—Olá, como vão? Obrigada por terem vindo.

Não sei se algo foi dito anteriormente por esta Instituição, mas temos aqui um trabalho com uma tarefa simples: que a paisagem seja puxada para dentro desta sala. Usaremos um aparato feito de tiras de nylon, destas que usam para fazer mochilas ou bolsas, material comum de ser encontrado no dia a dia. Este desta sua bolsa aí (aponta para a mochila de um dos candidatos). O aparato é conectado ao corpo da pessoa que puxa a paisagem para dentro em uma extremidade e na outra extremidade conecta-se à paisagem. Existe uma intersecção entre as duas partes que será afinada diariamente por alguém da Instituição para que todas as tiras mantenham-se esticadas. Esta também é uma tarefa simples e está a cargo de quem estiver cuidando desta ala do museu.

Alguém tem alguma pergunta?

 

(silêncio)

 

—Bom... continuo então. As tiras que estão na paisagem estão amarradas em toda sorte de lugares do lado de fora (arquitetura, árvores, chão, carros, postes, etc. etc.) e o público pode muitas vezes não apreender totalmente onde elas terminam, têm a sensação de que se perdem ao longo de uma paisagem ampla. Por outro lado, todas culminam chegando por aquela porta da arquitetura bem ali ao lado e neste caso aqui, fazem a curva por esta parede lateral, chegando enfim até o puxador (vocês). No puxador, elas se transformam em duas alças acolchoadas ergonomicamente projetadas. O puxador tem a facilidade de colocá-las e tirá-las sempre que necessário. É importante que conforto e dignidade sejam mantidos, não importa qual seja a tarefa que os participantes realizam, assim é de forma geral no meu trabalho de arte e acho importante frisar.

Vocês certamente foram avisados pela Instituição que estarão nus, não? A nudez neste caso é essencial em todas as ideias de Homem=carne/Mulher=carne. Porque cada pessoa, corpo arquitetura, é em si mesmo, e os aparatos estão construídos em relação a pessoa e a própria tarefa. Podem ou não cobrir esta nudez essencial da arquitetura do corpo.

 

—Eu tenho uma pergunta. [um dos candidatos fala] Quando o aparato vai ser construído? Podemos vir aqui e testar, ensaiar? É preciso fazer um movimento de esforço todo o tempo? Há pausa para descanso?

 

—Não podem ensaiar. Não há ensaio. A tarefa é simples e vocês vão entendendo a partir do momento que começam. Não há nenhuma elucubração além da própria ideia de puxar. Vocês puxam em direção à frente de onde estarão posicionados pela terminação do aparato. Não pode haver ensaio, porque não é nenhuma outra linguagem que controla, a priori, o movimento de cada um. Eu não dirijo ou coreografo neste sentido para criar uma imagem totalmente controlada, portanto as instruções que estou dando a vocês agora fazem parte deste rito inicial e somente isto bastará: a tarefa é da ordem da simplicidade, puxar fazendo o esforço e pronto.

Os candidatos escolhidos hoje voltarão um dia antes da abertura da exposição para olhar o aparato e entender, sem ensaio, do que farão parte.

O esforço deve ser contínuo e intenso. No entanto, entendemos que o corpo realiza um diagrama de esforço que varia e certamente em alguns momentos está mais cansado ou economiza a energia, porque entende o tempo que realizará a tarefa. Eu não estou dizendo que vocês devem estar na defensiva desta energia, economizando-a, porque se cansarão evidentemente. Pelo contrário, a ideia de esforço aqui tem uma inteligência de dignidade em relação à imagem e a vocês mesmos. Não estamos trabalhando uma obra de exaustão. Queremos que a paisagem do lado de fora entre dentro da Instituição, museu, arquitetura, ou como pudermos chamar isto aqui.

Entendido? Prezo a ideia de uma energia real relacionada à tarefa deste homem e à imagem aqui construída. O descanso aqui será no mesmo lugar, a não ser que haja uma necessidade maior do corpo, ir ao banheiro ou algum desconforto real; então, vocês, responsáveis dignamente pela obra, retornam assim que resolvida qualquer questão física de desconforto. É importante que estejam bem, por isso falo de dignidade da construção nesta obra. OK? Vocês verão, por vezes, o puxador está mais lento, por vezes até cessa o ato de puxar e pende o corpo numa diagonal sustentada pelas próprias alças em descanso, e então retorna com a consciência de que deve persistir. Isto vai criando um diapasão visual desta tarefa, deste homem, esforço forte, mais lento, pausa no lugar e retorno do esforço. Há beleza nesta oscilação e neste engajamento do participante, que é percebida pela honestidade da simplicidade da tarefa de puxar, ainda que a tarefa seja aos  nossos olhos e entendimento, absurda (risos).

 

Alguma dúvida até agora?

Acho que as questões da tarefa estão explicadas, não há maiores mistérios. Ah, uma coisa importante que acho que está na minha fala. A tarefa é introjetada pelo Puxador, é um ato interno também, de certa maneira meditativo e monástico, por assim dizer, não pretende puxar de forma interpretativa, a incessante tarefa abolirá interpretação. O Puxador deve concentrar-se de forma real naquilo que faz. Não conversa com ninguém, porque diante de tal tarefa, parece absurda a ideia de que haja como conversar. O público entende e respeita de forma geral este ato que presencia. Quem conversa com o público é quem trabalha diretamente no museu, isto não é “serviço” de vocês. E vocês perceberão que a tarefa toma todo este tempo e atenção.

Há algo muito importante sobre a estrutura geral e sentido/conceito de Homem=carne/Mulher=carne: o fato de que aqui nesta obra não há interesse na experiência que vocês estão vivendo. É muito importante deixar isso claro desde já. Para Hc/Mc, vocês são matéria que formam uma imagem e que faz parte de um todo.

É esta a “carnalidade” (Laura toca nas coisas, cadeiras, braço de alguém, chão, parede). Não há hierarquia: vocês, assim como o aparato e a própria paisagem que é puxada, têm a mesma importância e valor. Não há valoração de um sujeito, entende-se que são pessoas, porque cada um possui uma compleição e ação que se distinguem de forma sensível e sutil na construção desta imagem. Há homens mais fortes ou mais fracos e que se movimentam distintamente, ainda que a tarefa seja evidente e clara. Todas estas sutilezas afetam, de forma sensível, a imagem geral da obra, mas não mudam o fato de um homem puxar uma paisagem e isso unifica a ideia aqui presente. Importante também dizer que não há espaço para nenhuma outra coisa além da introjeção e ação da tarefa de puxar concentradamente. Ninguém vai resolver recitar uma poesia no meio desta obra, nem mesmo fingir que puxa a paisagem, criando um movimento de interpretação da ordem do teatro. Estamos entendidos sobre isso?

 

Esta carnalidade, esta não hierarquia entre homem e mundo, abstêm-se da ideia de experiência deste Puxador, ele é imagem. Importante frisar, porque isso está no cerne da ideia do que vocês fazem de não ser uma performance (em termos gerais do que entendemos performance dentro da história da arte), porque vocês são apenas matéria de construção da imagem e nada mais. A equação Homem=carne/Mulher=carne possui uma crueza de construção. Ainda que seus nomes possam estar identificados no folder como participantes, vocês nesta imagem não passam de matéria. Se estivessem fazendo esta obra nos anos 60 e 70, contextos históricos e políticos distintos, talvez eu me interessasse pela experiência de vocês. E aí é que está a diferença de fazermos esta obra não mais com os pressupostos daquela outra época.

—Eu vi imagens na Internet, mas ouvindo você a coisa toma outra dimensão (fala um dos candidatos).

 

—Quando criei estas obras não havia Internet e eu não mostrava previamente nenhuma imagem das obras. Claro que elas podiam estar publicadas num livro e o candidato a Puxador ver uma foto. As obras podem ser filmadas e fotografadas, mas nenhuma destas mídias dão conta do que acontece aqui. Vocês verão. Mas isso é um fato, não uma condição da obra. Na Internet tem fotos boas e um monte de ruins, mas foram publicadas pelas pessoas que passam aqui. Aliás, se vocês, por estarem nus, quiserem restringir o público de fotografá-los, eu posso entender, apesar de não concordar e ser uma ingenuidade, as pessoas tirarão fotos mesmo que esteja proibido e vocês devem conscientizar-se disso desde já, ok? Por isso, levem em conta todos estes aspectos, antes de quererem efetivamente tomar parte disso tudo ou não, a hora é agora e por isso, faço questão de explicar todos estes itens.

Vocês entenderão que eu estou aqui agora e depois não estarei mais. Criei obras que independem da minha presença e isto foi maquinado desde o princípio quando inventei as categorias que constroem a ideia geral de Hc/Mc. Estarei aqui até a inauguração da exposição e depois não mais. Vocês entenderão que deverão tomar conta pra si e por si desta obra e devem respeitar os horários de transição e troca de Puxadores, respeitar o colega que também faz a obra, chegando nos horários estabelecidos de trabalho. Vocês devem construir uma ética entre vocês e em relação a existência desta obra. Que passa a ser a partir de agora da responsabilidade daqueles que serão escolhidos.

 

Mais alguma pergunta?

LAURA LIMA

 

Laura Lima, mineira, vive e trabalha no Rio de Janeiro. Frequentou a Escola de Artes Visuais do Parque Lage e graduou-se em Filosofia pela UERJ, Rio de Janeiro. Desde que levou uma Vaca para a praia de Ipanema no Rio de Janeiro em meados dos anos 90, iniciou um conjunto de obras sob a equação ‘Homem=carne/Mulher=carne’, onde seres vivos são matéria de construção de imagem, invocando um glossário pessoal em sua obra.

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